Livro mescla figuras da política brasileira com criaturas sobrenaturais

‘Anjo Negro’ é narrado pelo guarda-costas de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato, que luta contra lobisomens e vampiros

Gregório defendeu o chefe, Getúlio Vargas, até o fim (foto: Ed Keffel/O Cruzeiro/D.A.Press 21/10/50)

Já imaginou um livro que mescla personagens políticos com criaturas das lendas? Pois Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Oswaldo Aranha, Washington Luís e Carlos Lacerda convivem com lobisomens, vampiros e demônios no romance ‘Anjo Negro’. A obra do escritor e tradutor Paulo Schmidt (autor do ‘Guia politicamente incorreto dos presidentes da República’) venceu o 3º Prêmio Nacional de Literatura, promovido pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), e acaba de ser lançada.

Nem biografia nem romance histórico, ela se enquadra no gênero que tem se destacado na literatura de língua inglesa: a mashup novel, misturando fatos e personagens verídicos com elementos fantásticos oriundos do folclore e do universo geek. “Temos algumas publicações nesse sentido, como Orgulho e preconceito e zumbis e Abraham Lincoln: caçador de vampiros, que até viraram filmes. No Brasil, ainda há poucos trabalhos nesse sentido”, comenta Schmidt.

A história secreta do presidente Getúlio Vargas é narrada por seu guarda-costas, Gregório Fortunato, apelidado de ‘Anjo Negro’ devido ao seu porte físico e à cor da pele. A trama descreve a luta dos dois para salvar o Brasil de seres endemoniados que o mantêm na miséria, desde a colonização. Fortunato trava violentas pelejas com criaturas monstruosas ao mesmo tempo em que interage com figuras históricas.

“Achei interessante explorar elementos da história com esse viés. É bem ousado, mas não tenho pretensão pedagógica. Temos personagens e acontecimentos reais, mas é uma ficção”, esclarece o autor.

Figura central da pesquisa, o gaúcho Gregório Fortunato, por si só, já é um personagem enigmático e envolto em controvérsias. Quando foi assassinado por um detento na prisão, em 1962, no Rio de Janeiro, faltava pouco tempo para ser libertado. Todos os seus pertences foram devolvidos à família, exceto o caderno de anotações, que desapareceu. “O relato do livro, todo em primeira pessoa, é sobre o que Gregório fez ao longo do tempo na cadeia. Ninguém sabe o que tinha naquelas anotações, por isso muitos afirmam que a morte dele foi queima de arquivo, pois o Anjo Negro sabia demais. Entrar na cabeça de Gregório Fortunato, personificá-lo com toques imaginários foi um desafio e um prazer”, ressalta o escritor.

O guarda-costas de Getúlio foi acusado de articular o atentado contra Carlos Lacerda, em agosto de 1954. A tocaia resultou na morte do oficial Rubens Vaz, deflagrando a crise política que culminou no suicídio do presidente da República.

METÁFORA

Os seres sobrenaturais que o chefe da guarda pessoal de Gegê (como o presidente é chamado no livro) enfrenta são uma metáfora de todos os responsáveis pelas mazelas que o Brasil enfrenta. Schmidt criou duas facções: os zevianos (de zev, lobo em hebraico), os lobisomens; e os atalefitas, cuja origem é atalef (morcego, em hebraico), que corresponderiam aos vampiros. “Os zevianos representam a extrema-direita – os coronéis, sobretudo os do Nordeste –, enquanto os atalefitas são a extrema-esquerda. É uma maneira que encontrei, por meio do realismo fantástico, de explicar a nossa vocação para o fracasso e a miséria. Quis mostrar a perversidade da classe política brasileira, pois esses seres se alimentam do povo”, revela.

O primeiro encontro dos protagonistas da mashup novel ocorre em atmosfera fantástica. Nos arredores de São Borja, terra natal de ambos, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, o então deputado Getúlio Vargas salva Gregório Fortunato das garras de um lobisomem e o liquida com balas de prata.

JUSCELINO

O Anjo Negro se enquadra em uma outra categoria criada por Schmidt, os venadores, responsáveis por caçar criaturas demoníacas. Gregório faz parte da seita secreta Ordem de São Duíche, que conta com outra figura proeminente, Juscelino Kubitschek. Os dois são amigos de longa data e se tratam por Nonô e Gregói. JK, aliás, é figura bastante presente ao longo das 300 páginas. Na visão do autor, Gregório Fortunato apresenta o político diamantinense a Getúlio, definindo-o como “um misto de idealismo, ambição e força camuflados por um sorriso”.

No romance, há até um fictício encontro, em 1952, em BH. Então governador de Minas, JK recebe a comitiva do presidente da República. “Detestei os arroubos modernistas de seu arquiteto favorito, um tal de Niemeyer, do qual a Pampulha, subúrbio planejado da capital, é exemplo típico. Arquitetura, para mim, só a clássica tradicional. Somente à noite pudemos conversar, os dois, num dos salões neoclássicos, longe do olhar de assessores e da esposa megera dele, Sara, a que bebia Black & White em copos separados (porque seria racista)”, afirma Gregório.

PENA

O romancista diz que não há indícios de que Juscelino e Gregório seriam próximos na vida real, mas usou um acontecimento verídico para criar essa amizade. Quando assumiu a Presidência, JK reduziu de 25 para 20 anos a pena do guarda-costas envolvido no famoso atentado da Rua Tonelero.

“Nesse enredo, Juscelino estaria no lado dos heróis não só por tudo o que fez ao longo de sua trajetória, mas por sua honradez, por seus projetos e porque foi o único governador que permaneceu ao lado de Getúlio quando o chamado ‘mar de lama’ começou. Coloquei-o como um venador porque, na vida real, ele lutou contra as forças obscurantistas e perversas que mantêm o Brasil atrelado à miséria e ao subdesenvolvimento”, diz Paulo Schmidt. 

O escritor observa que o interesse de biógrafos e historiadores pelo Anjo Negro só surgiu depois de sua prisão. Em sua opinião, Fortunato foi uma das maiores vítimas de fake news da história do país. “Criaram os mais variados boatos e histórias sobre tudo o que você puder imaginar a respeito dele. Mas uma coisa que ninguém pode negar, e está presente no meu livro, é a lealdade dele a Getúlio Vargas. Até o último momento, foi fiel ao presidente e nunca quis acusá-lo de qualquer coisa, mesmo pressionado”, afirma Schmidt.

Na trama, esses fortes laços se explicam pelo fato de Gregório ser também um Vargas. “O romance teria o subtítulo A história secreta de GV, referindo-se a Gregório Vargas, o irmão bastardo. Mas isso é fruto da minha imaginação”, afirma.

ATENTADO RUA TONELERO

De acordo com alguns historiadores, o atentado da Rua Tonelero, em Copacabana, teria sido forjado. Na madrugada de 5 de agosto de 1954, Carlos Lacerda, jornalista e ferrenho opositor do governo Vargas, voltava para casa acompanhado do filho, Sérgio, no carro do major-aviador Rubens Florentino Vaz. Os três saltaram do veículo e, ao se despedir, uma pessoa surgiu das sombras e disparou vários tiros. O major foi atingido no peito. Lacerda levou o filho para a garagem do prédio e voltou atirando, mas o agressor fugiu num táxi. Um guarda ouviu os disparos e também foi baleado, mas anotou a placa do veículo. A investigação chegou até Gregório Fortunato, que foi preso e condenado.

Getúlio Vargas se suicidou 19 dias depois do crime. “Sempre achei o atentado uma história muito mal contada, me interessei pela figura do Gregório. Eu, particularmente, como muita gente, não acredito que realmente houve um atentado”, diz Paulo Schmidt.

O desaparecimento do prontuário hospitalar, que poderia atestar se Lacerda teria sido realmente ferido no pé, e o fato de o jornalista nunca ter apresentado sua arma para ser periciada são alguns indícios da farsa, segundo o escritor. “O corpo do major Vaz não passou por autópsia e o próprio Alcino, que seria o pistoleiro, afirmou que foi contratado apenas para seguir Carlos Lacerda, para descobrir algum podre. Na noite do crime, o major Vaz o viu, tentou detê-lo e por isso foi atingido”.

A versão de Anjo Negro se aproxima da tese que Paulo Schmidt defende. Florentino Vaz seria um venador (caçador das criaturas sobrenaturais) com a missão de eliminar o atalefita Carlos Lacerda, personagem chamado de A Porca (La Cerda em espanhol) no livro – na vida real, o líder da UDN era conhecido como O Corvo.

Ao deixar o jornalista em casa, o major ouve os passos de Alcino, vira-se e dá as costas a Lacerda. “Nesse momento, Carlos Lacerda atira em Vaz, por trás. Quando este se vira, ele lhe dá mais dois tiros no peito, que o liquidam. O que fiz foi misturar elementos verídicos com fantasia”, conclui Schmidt.

Autora: Ana Clara Brant
Fonte: UAI Artes e Livros

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