Cleópatra: o umbigo de Júlio Bressane

Não canso de me surpreender com a distância existente entre os cineastas brasileiros e o público que vai ao cinema. Aqueles, em sua maior parte, não produzem filmes para ser assistidos, mas para ganhar prêmios em festivais. Exemplo gritante é Cleópatra, de Júlio Bressane, que estreou em São Paulo há pouco, em dois cinemas somente, com apenas uma sessão cada. Antes disso, já tinha participado de vários festivais de cinema pelo mundo, e talvez sido premiado em alguns: quem é que fica sabendo? Agora, assisti-lo mesmo, quem é que assiste, se ele estréia em duas míseras salas na maior cidade do país?

Num primeiro momento, a revolta: os cineastas brasileiros são discriminados, veja-se o Indiana Jones estourando em mais de 50 salas só em São Paulo! Mas não é bem assim. Os cineastas brasileiros é que não estão muito interessados em espectadores. Seu interesse é filmar o próprio umbigo, com os governos estaduais e municipais a financiar tais exercícios de narcisismo. O próprio Bressane sabia que seu filme era inassistível ao fazê-lo, pois em algumas estréias chegou a pedir ao público que não se retirasse antes do término das duas infindáveis horas de projeção.

Alguns artigos atrás, neste mesmo blog, critiquei os diretores teatrais brasileiros de um modo que, acredito, se aplica aos cineastas brasileiros:

Por que os diretores não páram com seus experimentalismos, bons apenas para eles e para seus egos inflados, e não dão aos espectadores de teatro o que pertence aos espectadores de teatro?

Acredito que a raiz desse mal está na relutância em profissionalizar a arte cênica. Fazer um teatro dirigido ao público pagante, ou seja, um “teatro profissional”, não é encarado como arte, e sim como comércio, ou prestação de serviço. Daí os diretores teatrais brasileiros insistirem no amadorismo, na experimentação, na encenação do próprio ego, o mais distante possível do texto para teatro. Afinal, se algum desses empirismos vazios e egocêntricos for bem-sucedido, o mérito recairá sobre o diretor, e não sobre algum grego morto há milênios.

Onde diz “teatro” e “grego morto há milênios”, leia-se respectivamente “cinema” e “roteirista profissional”.

A analogia com o teatro tem muito a ver com o filme de Bressane, inclusive porque sua Cleópatra funcionaria melhor num palco. Os cenários, figurinos e atuações ostentam o artificialismo que só perdoamos em espetáculos ao vivo. Não conheço outros filmes seus, mas ele não parece ser um cineasta que sabe aproveitar os inúmeros recursos da sétima arte. Todos os vícios do cinema nacional estão presentes neste Cleópatra: cenas interminavelmente longas, monótonas, mal editadas, sem trilha sonora, sem qualquer música de fundo as mais das vezes, som ruim, o áudio mal sincronizado com falas de atores em algumas cenas externas. Estes são mais que ruins (Miguel Falabella como Júlio César, por Júpiter!), e Alessandra Negrini no papel-título pouco tem a recomendá-la além da bundinha escultural. Todas as seqüências foram captadas com uma única câmera imóvel, de modo que são todas estáticas, além de intoleravelmente demoradas, como se o diretor quisesse tirar o máximo proveito dos quatro cenários (que seriam suficientes no teatro, mas num filme são indigência pura) e das peças de mobiliário copiadas (mal) de originais egípcios, como o pequeno trono de Tutancâmon.

Apesar dessas reproduções algo toscas, o filme não tem qualquer pretensão à historicidade; a Cleópatra de Bressane é puramente estética, e os nomes históricos de Alexandria, Atenas, Roma, funcionam como meros arquétipos. Por isso mesmo teriam sido benvindas inovações e transgressões no figurino e nos cenários, que parecem reles imitações baratas do filme estrelado por Elizabeth Taylor ou de montagens meia-boca da Paixão de Cristo.

Gostei da subjetividade dos diálogos, mas ela não consegue disfarçar inteiramente a pobreza das idéias expressas em frases como “contemple com seu olhar” ou “o mundo chama-se mundo porque é imundo”. Pensarão alguns que basta conjurar César, Cleópatra e Marco Antônio como personagens para que qualquer tolice posta na boca deles se transforme automaticamente em Shakespeare?

O filme pelo menos evita lugares-comuns, como o da serpente que teria dado morte à lendária rainha do Egito. Esta, ao invés, bebe de um veneno que ocultava no próprio umbigo. Duvido que Bressane tenha feito de propósito, mas metáfora nenhuma poderia ser mais oportuna para mostrar o que está envenenando o cinema nacional: a adoração dos cineastas ao próprio umbigo.

Bookmark the permalink.